30 janeiro 2010

O império das marcas

O império das marcas
Com investimentos de 5 bilhões de reais e uma gestão tipicamente brasileira, o empresário João Alves de Queiroz Filho, ex-dono da Arisco, comprou 20 concorrentes e transformou sua Hypermarcas numa das maiores empresas de consumo do país.

Nos últimos anos, a economia brasileira passou por profundas transformações - quase todas para melhor. A estabilidade é hoje algo que nem mesmo os esquerdistas mais raivosos colocam em questão, o país atingiu o grau de investimento, o mercado de capitais tornou-se um dos mais pujantes do mundo, o acesso ao crédito ficou mais fácil e barato. A combinação desses fatores fez surgir o que alguns economistas já chamam de "novo capitalismo brasileiro", um período de formação de grandes companhias nacionais aptas ou dispostas a competir com algumas das maiores corporações globais. "É um momento inédito, que permitiu a ascensão de empresas brasileiras com potencial de ganhar o mundo", afirma Oscar Malvessi, professor de finanças corporativas da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Poucas empresas representam tão bem essa fase como a Hypermarcas -seja pela rapidez com que foi criada, seja pela forma peculiar como é administrada. Criada há nove anos, a partir de um produto sem quase nenhuma tecnologia ou inovação - a lã de aço Assolan -, a Hypermarcas passou de média empresa com faturamento de 30 milhões de reais no primeiro ano de operação a uma respeitável companhia de 3,5 bilhões de reais de receita em 2009. Trata-se de um espetacular crescimento de 11 500% em menos de uma década. Nesse período, investiu cerca de 5 bilhões de reais em 20 aquisições de empresas nacionais, todas de bens de consumo, algumas com marcas bastante conhecidas, sobretudo no crescente - e hoje sexy - mercado da classe C. Em 2009, segundo um levantamento da consultoria Bain&Company, a Hypermarcas foi a empresa brasileira que mais foi às compras (excluindo firmas de private equity e bancos), com cinco aquisições que somaram quase 2 bilhões de reais.

Embora seja uma empresa aberta, com valor de cerca de 11 bilhões de reais em bolsa e milhares de acionistas, a Hypermarcas é um reflexo da forma de pensar do goiano João Alves de Queiroz Filho, mais conhecido como Júnior, um dos raros empresários brasileiros que reinventaram o sucesso em tempos, circunstâncias e negócios diferentes. Aos 57 anos de idade, fundador e dono de 31% do capital da Hypermarcas, Júnior está construindo um gigante do mercado de consumo pela segunda vez. Durante quase duas décadas, ele comandou a Arisco, empresa fundada por seu pai em 1969. Depois da venda da companhia por 760 milhões de dólares para a americana Bestfoods (que viria a ser incorporada logo em seguida pela anglo-holandesa Unilever) no ano 2000, Júnior decidiu recomeçar. Seu plano era construir uma espécie de "Procter& Gamble brasileira", uma companhia que oferecesse produtos de consumo em áreas tão diferentes quanto alimentos e medicamentos, sobretudo para os consumidores emergentes. Assim como fizera na Arisco, ele não criaria nada novo. Seus produtos - de lãs de aço a medicamentos genéricos - não demandam patentes ou grandes departamentos de pesquisa e desenvolvimento.
São uma alternativa, muitas vezes mais barata, ao que o consumidor já se acostumou a comprar. Seu grande capital, ao fazer isso, seria a combinação de experiência na produção, domínio do marketing de massa e conhecimento profundo dos canais de distribuição - três pilares construídos durante sua trajetória na Arisco. Os resultados recentes da Hypermarcas mostram que, pelo menos nesse sentido, Júnior já chegou perto de seu objetivo. Hoje, sua empresa conta com um portfólio com mais de 170 marcas e 4 000 produtos - de molho de tomate a analgésicos - e tem praticamente o dobro do tamanho da operação brasileira da P&G, que faturou cerca de 1,8 bilhão de reais no país em 2009. “Vi que havia muitas empresas como a Arisco, de origem familiar, que uma hora seriam alvo de um movimento de consolidação”, disse Júnior a EXAME, em uma de suas raríssimas entrevistas (suas fotos nesta reportagem são as primeiras publicadas por um veículo de imprensa). “E acreditei que eu poderia ser o consolidador.”

A face de comprador serial começou a se manifestar em 2001, quando Júnior recomprou a Assolan, marca que fazia parte do portfólio da Arisco, da Unilever. No ano seguinte, lançou o sabão em pó Assim. A partir de 2003, com um apetite cada vez mais voraz, arrematou de empresas praticamente anônimas marcas consagradas como Doril e Bozzano. Seu radar é acionado sempre que ele se depara com uma companhia dona de produtos conhecidos do grande público mas que por alguma razão foram “esquecidos” ou com empresas familiares que enfrentam dificuldades de su-cessão. Identificado o alvo, é hora de Júnior mostrar sua habilidade de negociação. “É preciso fazer o dono da companhia perceber que, se ele vender, receberá um valor justo e que a obra de sua vida não será enterrada. Do contrário, a empresa pode desaparecer”, diz.

Esse poder de persuasão, aliás, é apontado por quem o conhece bem como um de seus maiores trunfos. Apesar da infância modesta, Júnior é um empresário sofisticado. Cerca-se de alguns dos mais respeitados banqueiros e advogados do país. Elabora estratégias complexas ao mesmo tempo que cultiva, no ambiente de negócios, a imagem do caipira bem-sucedido. Em boa medida, Júnior é a personificação de um estilo de gestão tipicamente brasileiro - um jeito de conduzir os negócios que combina técnicas sofisticadas com uma dose considerável de intuição, agressividade com o conservadorismo nos custos típico dos negócios criados do zero, decisões rápidas com personalismo. Com seu jeitão simples, ele sabe dizer o que o interlocutor quer ouvir e não tem problema em fazer concessões - algo normalmente complicado para as multinacionais. Foi assim, por exemplo, que a Hypermarcas atravessou a negociação da americana Pfizer com o laboratório de genéricos Neoquímica. Apesar de colocar na mesa uma ótima proposta financeira, a Pfizer não garantia uma posição executiva de destaque para o então presidente e principal acionista da Neoquímica, Marcelo Limírio Gonçalves Filho. A negociação entre as duas empresas já estava em estágio avançado quando Júnior entrou na disputa. Segundo um executivo que acompanhou de perto o processo, ele ofereceu praticamente o mesmo valor da multinacional americana - 1,3 bilhão de reais -, mas garantiu que Gonçalves Filho assumiria o comando da área de medicamentos da Hypermarcas. “Sempre aproveitamos as pessoas e as culturas das empresas que compramos. Elas já sabem como funciona o negócio e, principalmente, os erros que têm de ser evitados”, diz Júnior. Em outro negócio fechado pela Hypermarcas no ano passado, ele adotou uma tática diferente. Percebeu que o dono da empresa com quem negociava se sentia frustrado por não ter herdeiros interessados no negócio e temia que as marcas que havia criado desaparecessem. “Sou o filho que você não teve e vou fazer nossa empresa crescer”, disse Júnior na ocasião. A frase foi decisiva para que o negócio fosse fechado - e está longe de ser mero bla-bla-blá de negociante. Depois de vender a Arisco, Júnior viu a marca praticamente desaparecer do mercado nos anos seguintes. Antes líder de mercado em alguns segmentos - como temperos, por exemplo -, ela hoje tem participação tímida dentro da linha de produtos da Unilever e há tempos não recebe nenhum investimento de marketing. No ano passado, a Unilever, vendeu para a empresa de café Santa Clara uma das marcas que vieram com a aquisição da Arisco - a Frisco, de sucos em pó, que chegou a ser vice-líder desse segmento no passado. A unidade da Arisco, em Goiás, foi modernizada e ampliada e hoje é a maior fábrica de alimentos da Unilever no mundo. (No mercado, comenta-se que a marca Arisco seria o novo alvo de aquisições da Hypermarcas. Os envolvidos não confirmam.)
Para construir seu conglomerado de produtos de consumo, Júnior contou com mais do que uma boa estratégia e uma lábia convincente. Ele precisou provar ao mercado que, de fato, tinha ambição e caixa suficientes para erguer uma companhia maior do que fora a Arisco. Nesse sentido, sua grande tacada veio em 2007, com a aquisição da empresa de medicamentos e produtos de cuidado pessoal Dorsay Monange, a paulista DM, dona de marcas como Doril, Gelol e Risqué. Com a compra da empresa por 1,2 bilhão de reais - a Hypermarcas triplicou seu faturamento. “Júnior é um ótimo negociador e soube aproveitar o bom momento do mercado brasileiro para criar uma grande companhia”, afirmou a EXAME Nelson Morizono, ex-dono da DM. Morizono e Júnior têm muitas características em comum. Além da aversão à exposição pública (a entrevista a EXAME foi a primeira já concedida por Morizono), ambos adotaram a estratégia de comprar marcas fortes e sustentá-las com pesados investimentos em marketing. A compra da DM marcou também a estreia da Hypermarcas nos dois mercados que mais crescem no setor de consumo, sobretudo depois que o fenômeno da ascensão da classe C se fortaleceu: o de medicamentos que dispensam receita médica, também conhecidos como OTC, e o de cuidados pessoais.

Apesar de seu papel essencial na definição de estratégias da companhia e, principalmente, nas negociações das aquisições, Júnior nunca teve uma função executiva na Hypermarcas. “Acho que tenho mais valor atuando como um grande consultor, ajudando a resolver problemas quando precisam de mim”, diz. Na sede da empresa, no bairro do Itaim Bibi, na zona sul de São Paulo, não há salas ou mesas reservadas para seu controlador. O dia a dia da Hypermarcas é tocado por dois de seus homens de confiança. Um deles é o executivo Cláudio Bergamo, ex-sócio da consultoria McKinsey, que ocupa a presidência da companhia. Aos 43 anos - 12 deles trabalhando com Júnior, Bergamo conhece o mercado brasileiro de consumo como poucos e aprendeu com o chefe a encontrar bons alvos. O outro é o administrador de empresas Nelson Mello, que está ao lado de Júnior há mais de três décadas e foi um dos responsáveis pelo crescimento da Arisco no passado. Hoje Mello é o diretor comercial da Hypermarcas e uma das vozes mais ouvidas por Júnior. Nenhuma aquisição é feita sem sua aprovação. Além dos dois, há apenas outros quatro diretores na Hypermarcas. Herança da Arisco, essa estrutura reduzida permeia todos os departamentos da empresa. A área de fusões e aquisições, por exemplo, hoje uma das mais importantes, tem apenas dois funcionários - antes de fechar seus grandes negócios, Júnior costuma pedir a ajuda do banqueiro Ricardo Lacerda, ex-Citi e Goldman Sachs. “A Hypermarcas compra muito bem, como se fosse um fundo de private equity, e tem uma capacidade de gestão de marcas exemplar”, diz Luis Arjona, sócio da consul toria Bain&Company.

A única área da Hypermarcas que Júnior comanda de perto é o marketing - tão de perto que nenhum anúncio de seus produtos é veiculado sem sua aprovação. Desde a época da Arisco, foi com investimento intensivo em publicidade que o empresário tornou suas marcas conhecidas a ponto de competir com produtos líderes de mercado. Júnior não usa agências de publicidade externas. Tudo é feito dentro de casa. Com isso, negocia os espaços publicitários diretamente com jornais, revistas e emissoras de televisão. Segundo o Ibope Monitor, a Hypermarcas é hoje o sexto maior anunciante do país. Sua fórmula de comunicação está diretamente ligada ao fenômeno das celebridades. Da lista de artistas e esportistas que dão aval a seus produtos estão nomes como a apresentadora global Xuxa, a atriz Mariana Ximenes e o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno. Atualmente, a Hypermarcas é a segunda empresa que mais contrata artistas e celebridades do país. Só fica atrás da Rede Globo. Em 2010, a empresa deve investir cerca de 300 milhões de reais em marketing. Desse total, boa parte será injetada em sua tacada mais recente: o futebol. Embora Júnior não seja fã do esporte, Bergamo torça para o São Paulo e Mello para o Palmeiras, a Hypermarcas fechou há algumas semanas o maior contrato de patrocínio da história do futebol brasileiro - com o Corinthians. No ano de seu centenário, o clube vai receber 38 milhões de reais para estampar em suas camisas as marcas do laboratório Neoquímica, do desodorante Avanço, dos produtos de higiene pessoal masculina Bozzano e do detergente Assim.
Pode-se dizer que o maior desafio de Júnior e seus executivos começa a partir de agora. Para manter sua velocidade de crescimento e o interesse dos investidores por seus papéis, sua empresa precisará fazer aquisições num ritmo ainda mais intenso do que o atual. A meta de Júnior é comprar uma média de um novo negócio a cada dois meses em 2010 - e pelo menos uma dessas operações deve envolver uma grande empresa. “Vamos comprar até triplicar de tamanho”, diz Júnior. Pelas contas de Bergamo, para alcançar um faturamento anual de aproximadamente 10 bilhões de reais, a Hypermarcas deverá levar cinco anos. Depois disso, o volume das aquisições deve diminuir gradativamente. “Já não haverá tantas empresas à venda no mercado”, diz Bergamo. A partir daí, preveem os executivos da Hypermarcas, o crescimento no Brasil passará a ser basicamente orgânico, concentrado nas áreas de atuação já exploradas pela companhia - alimentos, higiene e limpeza, cuidados pessoais e medicamentos.

Segundo pessoas próximas a Júnior, porém, ele já estaria analisando a possibilidade de dar os primeiros passos rumo à internacionalização de seu negócio. “Com a crise, de fato, há empresas baratas nos Estados Unidos e na Europa”, diz Júnior. “O problema é que não há muita sinergia com os negócios no Brasil, e isso acaba encarecendo a operação.” Entre as “companhias baratas”, Júnior estaria olhando de perto um pequeno laboratório farmacêutico americano e uma fabricante de cosméticos na Europa.

A entrada em mercados externos pode ajudá-lo a trilhar o caminho para a perenização da Hypermarcas. Nenhuma de suas três filhas trabalha na empresa e Júnior já deixou claro que elas jamais assumirão outro papel que não o de acionistas. Uma saída, diante disso, seria fazer com a Hypermarcas o mesmo que o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, de quem Júnior é adminrador confesso, fez com a AmBev. A cervejaria dominou o mercado local, se uniu à belga Interbrew, comprou a Anheuser Busch e hoje é a maior do mundo no setor. Embora Lemann, Telles e Sicupira não detenham o controle acionário da ABInbev, foi o modelo de gestão brasileiro que prevaleceu. Desde a abertura de capital da Hypermarcas, em 2008, Júnior voltou a trabalhar no mesmo ritmo intenso dos tempos da Arisco: cerca de 10 horas por dia. Para manter a energia, ele pratica exercícios diariamente - seu esporte preferido é a natação. Nos momentos de folga, um dos programas prediletos é viajar com seus três melhores amigos: o expiloto de Fórmula 1 Nelson Piquet, o iraniano Abbos Abrapour, que conhece Júnior desde a adolescência e hoje vive tempo, apurou o gosto por um estilo de vida requintado. Adora carros potentes e esportivos - já teve uma clássica Ferrari vermelha e hoje é dono do único Aston Martin DB9 que roda no Brasil. Seu jato particular, um Citation X, é usado tanto nas viagens de lazer quanto nas de trabalho. (Mesmo nas viagens profissionais, Júnior não cobra um centavo da empresa pelo uso do avião. Seu patrimônio inclui ainda três lanchas e uma coleção de obras de arte com quadros de Tarsila do Amaral. A fortuna do empresário é estimada em cerca de 2,5 bilhões de dólares e, neste ano, o goiano João Alves de Queiroz Filho deve aparecer pela primeira vez na lista da revista americana Forbes como um dos homens mais ricos do mundo.

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